Amargos como os Frutos / Paula Tavares
"Cresce comigo, o boi com que vão me trocar."
Amargos como os frutos. Poesia reunida; é uma coletânea de 6 livros: Ritos de passagem (1985), O lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003), Manual para amantes desesperados (2007) e Como velas finas na terra (2010).
A poesia de Ana Paula é um chamamento feminino aos sentidos. Quando um homem faz poesia para a mulher, olha-a de fora. Para o poeta isso não é tão difícil porque ele lavra no terreno do imaginário. A mulher que o homem poetiza é a que ele vê, não a que ele sente. É aquela que ele deseja, então tem um pouco do masculino de si mesmo. Enquanto musa, a mulher é idealizada e por isso mesmo uma mulher impossível, tão perfeita quanto criativo possa ser o querer.
Em "Amargos Como os Frutos", a mulher é real. Sofre a opressão dos costumes, tem suas angústias, e cuida das próprias cicatrizes com determinação e coragem. Na sensualidade, na delicadeza, no sabor e fertilidade do fruto mulher, há esse amargo íntimo que não é próprio de sua essência. E nesse reconhecimento aflora sua liberdade coletiva.
Paula Tavares não faz da relação homem/mulher, uma oposição entre sexos, embora a crítica contundente e sutil denuncie sua condição de submissão ao homem. O que ela faz é dizer a ele que se reconhece nos seus desejos, possuída como ele, de sensações. E que o deseja também. E que desse encontro, renasce nele como sua maior inspiração para viver.
O cenário é de uma Angola recém liberta do colonialismo português, acorrentada aos seus simbolismos, instrumentos que a autora utiliza como "Rito de Passagem", para uma mulher consciente de sua condição, mas lúcida e capaz de se conduzir sem os instrumentos que orientam os rebanhos.
Estão presentes; a terra, os animais, os frutos, os rituais e o corpo erotizado da mulher que ora se abre em sementes, ou despe a pele aos fiapos; doce, úmida nos seus cheiros, suave ao paladar.
Há porém uma aura sagrada nessa mulher Africana, que a remete à mais profunda individualidade para emergir sem culpa de sua feminilidade.
É uma obra sedutora e saborosa. Servirá de reflexão ao homem; uma outra inspiração ao que se fez poeta, nessa linguagem da alma feminina. E será reconhecida por qualquer mulher, livre ou não de estigmas, mas sempre cúmplice desse lirismo.
Merece destaque, as ilustrações (no primeiro livro: Ritos de Passagem) de José Luandino Vieira; a releitura de Paula Tavares - por um também escritor português - através de manchas de café e tinta-da-china.
... algumas poesias
"Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas ruas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo acesso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
vou
para o sul saltar o cercado
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Devia olhar o rei
Mas foi o escravo que chegou
Para me semear o corpo de erva rasteira
Devia sentar-me na cadeira ao lado do rei
Mas foi no chão que deixei a marca do meu corpo
Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo
O escravo era novo
Tinha um corpo perfeito
As mãos feitas para a taça dos meus seios
Devia olhar o rei
Mas baixei a cabeça
Doce terna
Diante do escravo.
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O meu amado chega e enquanto despe as sandálias de couro
marca com o seu perfume as fronteiras do meu quarto.
Solta a mão e cria barcos sem rumo no meu corpo.
Planta árvores de seiva e folhas.
dorme sobre o cansaço
embalado pelo momento breve da esperança.
Traz-me laranjas. Divide comigo os intervalos da vida.
depois parte.
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Deixa perdidas como um sonho as belas sandálias de couro.
O autor e a Obra