A paixão segundo G.H. / Clarice Lispector

24/07/2014 12:40

Vivendo uma liberdade recentemente ampliada, G.H.; mulher sem filhos e marido, financeiramente independente, se entrega a reflexões, em um introspectivo monólogo sobre sua condição.

Deriva a um vai-e-vem de questionamentos que antecipa uma visita ao quarto da empregada que se despediu, e amplia-se a partir de então - com espanto. É como uma máquina de costura que repica sobre si mesma, a golpes de agulha, na construção de uma pele.

Mas, quem é G.H.? Por acaso duas consoantes na ordem lógica do alfabeto? Uma incógnita ao acaso? Quantas desconhecidas poderiam surgir da composição dessas iniciais? Alguma delas seria a G.H. que se procurava entre as outras? Ela sabia quem era, mas, "entre quais eu sou?", se perguntava.

No quarto vazio da empregada, descobre-se julgada em silêncio, por quem de fato não conhecia e lhe era indiferente, invisível. Percebe um universo incômodo e intruso, que abriga dentro de uma construção sua das coisas que lhe falam ao conforto da alma.

Mas o que a repugna, é a barata encontrada no vão do guarda-roupa. A mesma que se sabia antes da humanidade, tão bem, a ponto de nunca ter precisado modificar-se para sobreviver, satisfeita de si mesma, perfeita, imortal, por mais que atingida pelo nojo.

Clarice organiza o pensamento, meticulosamente. Aprofunda-se o quanto pode na análise do ser humano. Menos, nesse qualquer que ela só conhece de relance - e ainda que cheia de incertezas - nesse eu que precisa ser dissecado. Sabe que tudo será em vão. Que repete as conclusões que a humanidade chegou para o que nunca deve ter resposta, mas quer encontrar-se na solução de si mesma, duvidando que seja ela mesma, improvável e réplica.

Mas a barata, metade morta, prensada na porta, confronta-a. Como o silêncio pode ser aterrador. Como um homem e um cachorro vazios podem encontrar nela algum vestígio de amor.
 
Que extraordinária e tensa relação entre ela e a barata, a fará ultrapassar a busca pelo humano, por tudo que há de humano nela?
 
O que ocorre nesse quarto é um ritual, que se processa lentamente, levando G.H. à uma origem quase simiesca, onde se simplifica a uma memória ainda não adestrada pelo medo.
 
G.H., por fim, pede: "Advinha-me! Advinha-me porque faz frio."[...] "quem sabe, disso tudo, poderá nascer um nome."
 
Ou ela nascerá da despersonalização?
 

... alguns trechos

"...e contigo começarei a morrer até poder aprender sozinha a não existir, e então eu te libertarei."
 
"É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno."
 
"Eram quase dez horas da manhã, e há muito tempo meu apartamento não me pertencia tanto. No dia anterior a empregada se despedira."
 
"Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que eu tivesse a viver para que me sobrasse tempo de... de viver sem fatos? de viver."
 
"Sempre tive uma admiração extremamente afetuosa por hábitos e jeitos masculinos, e sem urgência tinha o prazer de ser feminina, ser feminina também me foi um dom. Só tive a facilidade dos dons, e não o espanto das vocações - é isso?"
 
"Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada aqui é brusco: um aposento precede e promete o outro."
 
"Eu estava tão nua que não fazia sombra."
 
"Eu já havia experimentado na boca os olhos de um homem e, pelo sal na boca, soubera que ele chorava."
 
"... e viver, me era o lado avesso de um crime."
 
"e quando atravessares minha escuridão te encontrarás do outro lado contigo. Não te encontrarás comigo talvez, não sei se atravessarei, mas contigo."
 
"Sobrei, presa por uma das pedras que desabaram. E, como o silêncio julgou a minha imobilidade como sendo a de uma morta, todos

esqueceram-se de mim, foram embora sem me retirarem, e, julgada morta, fiquei assistindo."

 

 

 

 

 

A Autora e a Obra

Clarice Lispector

  

  ISBN: 8532508096
  Idioma: português
  Encadernação: Brochura
  Altura: 21 cm
  Largura: 14 cm
  Edição: 1 / 1998
  Número de páginas: 180
  Editora: Rocco
  Gênero: Romance

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